30 anos de LEADER: Testemunho de Alberto Melo

2022-09-12

Iniciativa "Desenvolvimento Local em Portugal - Uma História Contada na Primeira Pessoa"

Alberto Melo, Associação IN LOCO

Desde 1985 até 1998, como diretor de uma associação de cidadãos (“In Loco”), coordenei um processo de desenvolvimento local no interior algarvio. Era um processo participado e integrado. Participado, porque se procurava a implicação e também o protagonismo das pessoas residentes nos locais das várias iniciativas. Integrado, pois nos projetos empreendidos eram sempre convocados os diversos setores de intervenção: social, educativo, ambiental, económico e, obviamente, cultural. 

O nosso território de intervenção era, de uma maneira geral, a Serra do Caldeirão. Na busca inicial de uma delimitação aproximada desta zona, em cada localidade visitada, se inquiria se estávamos na Serra. Que não, que era mais acima. E de mais acima em mais cima já se descia para o Alentejo sem termos encontrado a demandada Serra. Logo compreendemos o motivo dessa negação constante: as palavras “serra” e “serrenho” tinham, na boca dos urbanos do litoral, uma conotação pejorativa, sinónimo de atraso e de ignorância. Nessas circunstâncias, a campanha primordial a lançar era a da reabilitação e requalificação destes conceitos. Publicou-se o “Jornal da Serra”, organizou-se a Feira da Serra, abriu-se na capital do Distrito a Casa da Serra, para venda de produtos locais, constituiu-se a empresa Serra-Mãe, oferecendo serviços de “catering” e explorando um antigo lagar de azeite como restaurante. Mais tarde, sentimos a alegria de testemunhar como os próprios residentes estavam a jogar o mesmo jogo, abrindo restaurantes e cafés “da Serra”, criando uma empresa chamada Beira-Serra e anexando com todo o brio o adjetivo antes tão desqualificado a vários produtos locais, a fim de enaltecer a sua origem e qualidade únicas: “linha serrana” (para a marca de roupa confecionada localmente), “medronho serrenho”, “licor serrenho”, “bolo da Serra”… 

Para além disso, o papel do património material foi também deveras relevante na afirmação da identidade territorial. Começámos pelo registo fotográfico de paisagens e lugares edificados, que foi em seguida a base de exposições itinerantes, onde os residentes viam, com agrado e orgulho, as suas terras e as suas casas ou partes delas (portas, janelas, chaminés, platibandas, etc.). Estas recolhas serviram mais tarde como fonte de inspiração para motivos gráficos incorporados, por artesãs e empresas locais então criadas, em peças de vestuário, obras de tecelagem manual e também calendários ou postais ilustrados. Em certos momentos, as crianças das escolas locais e dos Centros de Animação Infantil (criados no âmbito do Projeto) também se associaram a este trabalho de detecão de elementos caraterísticos do habitat. 

Foi de igual modo crucial o papel do património imaterial. A escuta e registo das histórias locais foram da maior importância e levaram, num caso concreto, à produção de uma peça de teatro numa das aldeias da Serra. Tal como a recriação de festas e festivais tradicionais entretanto interrompidos (porque, na Serra, nas palavras de um habitante, “já só sobravam os que já tinham sido e os que ainda não foram”, isto é os velhos e as crianças). Aliás, estas últimas foram determinantes nas várias iniciativas de retomar tradições extintas (as “Maias”, por exemplo, ou as Marchas de Carnaval e Corsos).       

Um caso exemplar de articulação entre tradição e modernidade é dado pelas “bonecas de juta”, fabricadas por um grupo de 6 artesãs numa das aldeias serranas, após um curso de formação ministrado pela Associação In Loco (que aliás foi a entidade responsável por todo o processo referido neste texto). As figurinhas estão armadas em arame e cobertas com tecido de juta, que uma vez desfiado também reproduz o cabelo. Não são anónimas, pois cada uma tem o seu nome, correspondente a uma pessoa que viveu naquela localidade e expõe uma actividade a que ela se dedicava (carregar a lenha, cozer o pão, sachar a horta, apanhar amêndoa…). Assim, para além do produto final, bastante atraente e com enorme venda nas feiras e lojas, coexistiu sempre a procura, curiosa e respeitadora, dos antepassados e das suas lides principais. Desta forma, seguindo uma metodologia que se multiplicou por todos os territórios de intervenção, o património tornou-se um ponto de partida fundamental para as várias iniciativas que procuravam, em simultâneo, desvelar diferentes facetas da cultura local e criar fontes de geração de rendimentos para residentes. 

O curso de tecelagem manual e os casos de autoemprego que se seguiram são exemplo de tal. Havia, realmente, uma forte tradição desta atividade em localidades serranas onde trabalhámos, o que se compreendia dado o grande número de pequenos ruminantes, ovelhas e cabras, ali existentes. E encontravam-se ainda em laboração algumas tecedeiras, muito poucas porém e de idade avançada. Procurámos então reanimar esta arte junto de mulheres mais novas, o que não foi fácil, porque o sentimento geral relativamente ao trabalho no tear era muito negativo. Cantava-se ali com frequência: “A mulher que é tecedeira / Tem o Purgatório em vida / Pau nos pés, pau na cabeça / Pau no cu, pau na barriga.” Rapidamente fomos confrontados com um dilema crucial: conservar as práticas, os equipamentos, os motivos e produtos tradicionais ou antes procurar viabilizar uma iniciativa empresarial, aperfeiçoando e modernizando esta prática? Num projecto relativamente vizinho, no Baixo Alentejo, a opção tomada foi a de “museologizar” a tecelagem manual, reproduzindo o que se fazia e como se fazia ao longo dos séculos. No entanto, esse trabalho de intervenção comunitária estava apoiado em verbas municipais e não enfrentava as mesmas contingências económicas que a Associação In Loco. 

A nossa decisão, tomada em consonância com a vontade das formandas (e futuras empresárias em nome individual), foi o de preparar desde o primeiro dia do curso a constituição de microempresas viáveis. Articulou-se então a participação de uma formadora local (tecedeira manual) com formadoras externas, substituíram-se os velhos teares, criaram-se novos padrões e produtos. Os teares antigos eram muito toscos e avariavam frequentemente, feitos de madeira de árvores locais eram extremamente pesados na manipulação. O principal produto tradicional era a manta “montanhac” (que se encontra também na África do Norte), um forte cobertor com motivos geométricos, jogando com os tons castanho escuro e branco da lã das ovelhas locais. A sua produção era excessivamente trabalhosa e demorava semanas, o que o tornava necessariamente caro. Optou-se então pelo fabrico de pequenas peças, mais baratas e de fabrico mais lesto e usando tanto a lã como o algodão. Quanto aos teares, foram encomendados da Suécia, em madeira bastante leve e com uma largura de 1,40m, enquanto as peças saídas dos teares tradicionais só tinham 0,70m. Portanto, em cada batida, agora muito menos cansativa, duplicava-se o produto. Esta abordagem de conjugação entre a tradição e a modernidade foi adoptada sempre nos demais cursos de formação para o autoemprego: costura e bordados, doçaria, plantas aromáticas e medicinais, bijuteria (esta com obras assentes em matérias vegetais existentes localmente).

A dada altura, colocou-se muito naturalmente a questão do escoamento dos produtos que saíam dos cursos de formação e outros que eram fruto do trabalho de pessoas residentes no território. Foi então necessário inventar uma nova feira, cuja primeira edição teve lugar em Loulé, antes do Natal de 1992. Previam-se inicialmente 4 feiras, uma por cada estação do ano, em cidades com alguma tradição rural: Loulé, Tavira, Silves e S. Brás de Alportel. Após os primeiros anos, só a de S. Brás se manteve, é uma feira que ocorre no final de julho, aproveitando o influxo de turistas e de emigrantes e atraindo sempre um vasto público. De início (até a ASAE espalhar o pânico nos vendedores), era maioritária a presença de produtores locais, com todos os seus artigos, desde queijos a enchidos, desde aguardente de medronho ou figo a pão e doces, desde artesanatos de todo o tipo a mel ou hidromel. E foi um momento forte de formação para todos os expositores, relativamente ao comportamento dos consumidores e foi sobretudo uma forma viva e colorida de revelar a Serra do Caldeirão e as suas culturas ao grande público, a tal “face escondida do Algarve”. 

A propósito de apresentação da Serra ao grande público, quero sublinhar a participação de duas mulheres desta zona num encontro europeu que se realizou em Lisboa tendo por tema a criação de emprego local. Participaram através de comunicações individuais sobre as suas experiências e fizeram-no na forma de expressão que dominam: não num texto corrido mas através de quadras. É de acrescentar que outras duas mulheres que participaram ativamente no Projeto mais tarde foram eleitas como Presidente de Junta. Alguns residentes sentiram-se também motivados e confiantes para escrever as suas obras: poesias, monografias, novelas com personalidades da história local. E, igualmente, artigos para publicar no Jornal da Serra. Várias participantes receberam do Projecto a inspiração necessária para completar a sua formação escolar, tendo algumas delas atingido entretanto a licenciatura (quando, pelo menos num caso, nem o 9.º ano tinha concluído).

Relativamente ao escoamento de produtos locais, quer naturais quer processados, alguém afirmara que a melhor exportação é a que se faz “na barriga do turista”, o que levou a uma multiplicidade de meios de difusão do território (mapas, roteiros dos pontos de atração - desde as oficinas de artesanato a sítios arqueológicos -, sinalização nas estradas e também festivais e pequenas feiras). Foi feita uma aposta forte na gastronomia do território, em torno de casas de pasto e restaurantes locais, através nomeadamente do Festival Sabor & Arte. No lançamento deste último, foi distribuído de forma pública e gratuita, um prato local – o jantarinho de grão – servido num enorme caldeirão instalado no cruzamento das principais estradas da zona. 

Quando se pensa ou fala em património destes territórios, é forçoso não esquecer que cada pessoa ali residente é dele uma parte integrante, como repositório vivo de memórias, saberes e competências. Esse era especialmente o caso relativamente aos mais idosos. Devido a uma vivência forçadamente autónoma, por se tratar de uma zona remota dos grandes centros e com reduzidos e precários meios e vias de comunicação, tinham gerado, ao longo de décadas, uma cultura de sobrevivência auto-suficiente. Sabiam fazer tudo, tudo aquilo que fosse necessário para garantir uma vida relativamente saudável e confortável, embora pobre em consumos e parca em posses. Possuíam competências para construir e reparar as suas casas, para tratar das hortas e das árvores, para manufaturarem têxteis para vestuário ou agasalho, para cuidar dos animais e aproveitar de alguns os subprodutos necessários (enchidos, mel, queijos…), para confeccionar chás e mezinhas, para domesticar o vento e as ribeiras em moinhos que transformavam o grão em farinha e, seguidamente, em construir e utilizar fornos de lenha (individuais ou colectivos) no fabrico de pão e produtos afins. Para pessoas que logo no primeiro contacto nos diziam “sou um ignorante”, “só tenho a 3.ª classe”, “nunca fui à escola”, “não conheço uma letra nem do tamanho de um boi”… o conhecimento era imenso e diversificado, aquele conhecimento que lhes tinha sido indispensável para viver na sua Serra e viver dignamente. 

Um dos momentos altos do Projeto aconteceu num sábado 25 de Aaril. Durante a semana, tínhamos organizado um Seminário Europeu sobre Educação de Adultos. Os regressos estavam previstos para Domingo e organizou-se na véspera uma excursão à zona serrana de intervenção, até porque se considerou todo este processo como um trabalho permanente de educação de adultos, educação dos residentes pela equipa e educação desta pelas pessoas locais. Em lugar de contratar com um restaurante de uma cidade do litoral, foi proposto à população de um pequeno lugar bem escondido na Serra (Graínho), através da sua Cooperativa de Regantes, que com a mesma verba preparassem uma refeição para as cerca de 50 pessoas que haviam participado no Seminário. Estamos perante uma actividade que combinou perfeitamente uma dimensão cultural, a mostra de cozinha serrana que ali foi oferecida e as demais expressões de hospitalidade, e uma dimensão de organização comunitária, na forma como foram tomadas as decisões, como se procedeu à divisão de tarefas, como se distribuíram os dinheiros. 

Desde o momento da chegada à localidade, com uma largada de pombos e percorrendo depois uma quelha juncada de plantas e flores selvagens, até à despedida final, entre abraços e até choros, decorreu um momento único na história de vida de quem participou nesta refeição em festa, tanto por parte dos visitantes como por parte dos residentes que, na sua totalidade, comendo, bebendo, conversando ou tocando música, também integraram o festim que tinham preparado. Foram as danças em pares improvisados entre residentes e forasteiros, ao som de um acordeão que ora tocava “modinhas” ora êxitos internacionais da altura. Foram as visitas guiadas por habitantes do local a pocilgos, a moinhos, a fornos de pão, a currais, à barragem local, às hortas e às próprias casas, onde se descobriam fotografias de família e pratos antigos pendurados nas paredes e se desvendavam arcas contendo preciosidades, pelo menos sentimentais, como lenços de chita, toalhas de linho, mantas de lã, naperons de renda ou até um vestido de noiva. 

Anos depois, ao reencontrar colegas estrangeiros que tinham estado presentes, todos evocavam a magia daquelas horas de íntima e intensa comunicação entre pessoas, independentemente da cultura e da língua de origem. Ninguém recordava já os temas do Seminário, mas ninguém havia esquecido a refeição-festa ao ar livre e no quente e afectuoso abraço da hospitalidade serrana.  


Terra Viva 2019


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A 3.ª edição do programa Terra Viva da Antena da TSF deu voz e ouvidos a 54 promotores e promotoras de projetos, beneficiários da Medida LEADER do PDR2020 através dos Grupos de Ação Local do Continente, entre os dias 3 de junho e 9 de julho de 2019.

ELARD

 

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A ELARD, constituída por redes nacionais de desenvolvimento rural, congrega Grupos de Ação Local gestores do LEADER/DLBC de 26 países europeus. A MINHA TERRA foi presidente da ELARD no biénio 2018-2019.

54 Projetos LEADER 2014-2020

 
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Repertório de projetos relevantes e replicáveis apoiados no âmbito da Medida 10 LEADER do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 elaborado pela Federação Minha Terra.

Cooperação LEADER


Edição da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural e Federação Minha Terra, publicada no âmbito do projeto “Territórios em Rede II”, com o apoio do Programa para a Rede Rural Nacional.





[ETAPA RACIONAL ER4WST V:MINHATERRA.PT.5]